Silêncio digital e poder: o apagão no Afeganistão e os limites contemporâneos da liberdade de expressão
- Alisson Geovani Pinheiro

- 10 de out.
- 8 min de leitura
Nota: As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem, necessariamente, a posição deste site.

Em setembro de 2025, o Afeganistão viveu uma das manifestações mais expressivas de censura da era digital, quando, por quase dois dias, o país foi submetido a um apagão nacional de internet e telefonia móvel, decretado pelo regime do Talibã, grupo que, desde 2021, retomara o controle do Estado e consolidara um modelo de governo pautado pela moral religiosa e pela rejeição às influências externas. A justificativa oficial para a suspensão dos serviços foi apresentada como uma tentativa de proteger a “moralidade pública” e conter a “corrupção” trazida pelo contato com o mundo ocidental, mas o episódio revela algo mais profundo e estrutural: a incapacidade de regimes politicamente frágeis de lidar com a pluralidade e a crítica sem recorrer ao silêncio como forma de governo.
Mais do que um acontecimento isolado, o apagão afegão inscreve-se em um processo histórico mais amplo, no qual o controle da informação se tornou um instrumento central de manutenção do poder. A medida, que à primeira vista poderia parecer um gesto contingente de autoridade, expressa na verdade uma lógica de longa duração, marcada por uma relação conflituosa entre tradição e modernização, religião e política, dependência econômica e aspiração de soberania. O controle sobre o discurso, nesse contexto, funciona como substituto do controle sobre a realidade: incapaz de transformar as condições materiais do país, o regime administra o medo por meio da interdição da fala.
A trajetória recente do Afeganistão pode ser compreendida como a história de um país que, situado entre impérios e interesses geopolíticos, raramente teve a oportunidade de definir seu próprio destino. Desde o século XIX, o território afegão foi palco de disputas estratégicas entre potências estrangeiras: primeiro, como zona de contenção no confronto entre o Império Britânico e o Império Russo, durante o chamado “Grande Jogo”; mais tarde, como fronteira de resistência à expansão soviética e, já no século XXI, como campo de batalha da “guerra ao terror” liderada pelos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. Cada uma dessas presenças externas produziu transformações políticas e sociais profundas, mas nenhuma delas consolidou instituições estáveis ou um sentimento de unidade nacional. O resultado foi um Estado fragmentado, cuja autoridade central sempre dependeu de alianças precárias e da presença de forças estrangeiras, e uma sociedade marcada pela sobreposição entre estruturas tribais, religião e intervenções militares.
Quando o Talibã retorna ao poder em 2021, após a retirada abrupta das tropas norte-americanas e o colapso do governo apoiado pelo Ocidente, sua ascensão não se dá como uma ruptura, mas como o fechamento de um ciclo. A promessa de “purificação moral” que o movimento proclama funciona tanto como gesto simbólico de retomada da soberania quanto como estratégia de reconstrução de legitimidade diante do vazio político e econômico deixado pela ocupação. O discurso religioso, que mistura a lei islâmica à retórica da resistência nacional, oferece um enquadramento ideológico capaz de dar coerência a um país devastado por quarenta anos de guerra, embora à custa da repressão das diferenças internas e do apagamento da pluralidade cultural que sempre caracterizou o Afeganistão.
A crise econômica que se seguiu à retomada do poder pelo Talibã intensificou ainda mais essa dinâmica. Com as sanções internacionais, a suspensão de ajuda financeira e o congelamento de ativos estrangeiros, o Estado afegão perdeu suas principais fontes de receita. Estima-se que cerca de 90% da população viva hoje em condições de pobreza, dependente de organizações humanitárias para garantir a sobrevivência básica. Nesse cenário de colapso material, a moralidade religiosa converte-se em instrumento de governo: ela substitui o discurso econômico e opera como forma simbólica de controle social. Ao apelar à fé e à pureza, o regime reafirma sua autoridade em meio à escassez, criando a ilusão de ordem moral onde há ruína institucional. A censura digital, apresentada como defesa contra a corrupção de costumes e a influência ocidental, cumpre a mesma função. Mais do que impedir o acesso à informação, ela reorganiza a sociedade a partir da exclusão, separando o mundo do permitido e o do proibido, reinstaurando uma hierarquia em que o silêncio é condição de pertencimento e a obediência, a forma mais segura de sobrevivência.
Tecnologia e soberania: o paradoxo da dependência
Ao desligar a internet, o Talibã não realiza apenas uma medida administrativa, mas encena uma concepção simbólica de soberania fundada na ideia de que o poder se manifesta pelo domínio do território e pelo controle dos fluxos. Esse gesto de desconexão revela, entretanto, uma contradição característica dos regimes autoritários contemporâneos: a tentativa de afirmar autonomia dentro de um sistema cuja lógica é, por natureza, relacional. Em uma ordem global sustentada pela interdependência informacional, o isolamento não gera soberania, mas uma forma paradoxal de dependência. O Estado que corta a rede não se emancipa das estruturas externas de poder; apenas abdica de participar delas e, ao fazê-lo, reafirma sua subordinação estrutural.
Grande parte da infraestrutura de comunicação do Afeganistão é administrada por empresas estrangeiras e depende de cabos e satélites internacionais, o que torna a interrupção mais simbólica do que efetiva. A suspensão da conectividade não representa uma conquista sobre a influência externa, mas a interrupção de um circuito vital do qual o próprio regime é parte. Sob a aparência de autoridade, o ato de desconexão expõe a fragilidade de um governo cuja existência depende precisamente daquilo que pretende rejeitar.
Essa contradição ecoa o que Achille Mbembe descreve como “autonomia negativa”,
conceito que identifica a busca de legitimidade, em certos Estados pós-coloniais, pela via do isolamento. A independência, nesse caso, não é a expressão de uma capacidade de agir, mas a encenação de uma recusa. Trata-se de uma forma de poder que se define menos pela produção de vínculos do que pela negação do outro. Desligar a internet torna-se, assim, o equivalente contemporâneo ao fechamento de fronteiras simbólicas: um ato que procura proteger a identidade nacional por meio da interrupção do contato, convertendo o medo da contaminação cultural em política de Estado.
Liberdade de expressão e suas ambiguidades
A liberdade de expressão, consagrada no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é frequentemente apresentada como um direito absoluto, mas sua concretização depende sempre das condições históricas, políticas e culturais em que se inscreve. Em democracias liberais, ela se apoia em instituições que regulam o conflito simbólico e garantem a coexistência de vozes divergentes; a liberdade, nesse contexto, não é ausência de limites, mas a possibilidade de que os limites sejam constantemente discutidos. Já em regimes teocráticos, o direito à expressão é interpretado dentro de um horizonte moral e religioso que subordina o discurso humano a um princípio transcendente de verdade. O Afeganistão, governado pelo Talibã, representa uma forma extrema dessa tensão: ao eliminar a fronteira entre o sagrado e o político, o regime dissolve a própria ideia de autonomia discursiva. Falar livremente, nesse contexto, é não apenas transgredir a ordem institucional, mas desafiar a estrutura espiritual que legitima o poder.
O autoritarismo, no entanto, raramente se sustenta pelo silenciamento absoluto. Ao contrário, ele depende de uma administração seletiva da linguagem. Em vez de abolir a comunicação, ele a hierarquiza, determinando o que pode ser dito, quem pode falar e de que modo o discurso deve circular. A censura explícita, como o apagão digital imposto pelo Talibã, é apenas a manifestação mais evidente de um sistema mais profundo de controle, que se exerce de forma difusa sobre a vida cotidiana. O Estado molda não apenas o conteúdo das falas, mas também os gestos, os rituais e os modos de escuta. É por meio desse controle capilar do dizer e do ouvir que se constrói a aparência de estabilidade de regimes sustentados na uniformidade da fé e na exclusão do conflito. A ordem resultante não é sinal de harmonia, mas de silêncio; não é produto de consenso, mas de disciplina.
O lugar das democracias
Seria um equívoco tratar o caso afegão como uma anomalia distante, fruto exclusivo de um regime teocrático e autoritário. Em proporções distintas, ele lança luz sobre debates que também atravessam sociedades democráticas, inclusive o Brasil, especialmente no que diz respeito à regulação do ambiente digital. Aqui, discute-se com insistência a criação de marcos legais para combater a desinformação, os discursos de ódio e os crimes cibernéticos, um movimento que, em grande medida, responde à necessidade de enfrentar problemas concretos, mas que, ao mesmo tempo, revela o risco inerente de transformar a proteção em vigilância e a regulação em uma forma velada de controle.
O país vive um momento em que a demanda por segurança digital e por maior responsabilização das plataformas cresce na mesma proporção em que aumentam a preocupação com os efeitos da polarização política e a manipulação informacional. Nesse contexto, a ideia de limitar o alcance de conteúdos considerados nocivos surge como tentativa de preservar a integridade do debate público, mas o terreno em que se pisa é escorregadio. O mesmo instrumento que pode coibir práticas criminosas pode, se mal delineado, abrir brechas para o cerceamento de vozes legítimas. Assim como o apagão afegão tornou explícita a vulnerabilidade de um Estado que confunde controle com estabilidade, o Brasil se vê diante do desafio de pensar políticas digitais que não repliquem, sob outra linguagem, a lógica da censura que afirma combater.
Ainda que o contexto nacional esteja distante de uma experiência autoritária, permanece a suscetibilidade ao uso político ou moralizante de instrumentos de regulação. O problema, portanto, não está em discutir o tema, mas em como fazê-lo. É preciso reconhecer que a internet abriga práticas criminosas, como fraudes, assédios, incitação à violência e disseminação de ódio, e que combatê-las é imperativo. No entanto, essa tarefa requer soluções técnicas e jurídicas que respeitem o pluralismo e a transparência, e não respostas genéricas que concentrem o poder de decidir o que é aceitável em poucas mãos.
O apagão digital do Afeganistão ultrapassa a condição de um episódio de autoritarismo isolado e se inscreve como um sintoma das contradições estruturais do nosso tempo. Ele evidencia que a disputa em torno da liberdade de expressão deslocou-se progressivamente do plano ideológico para o plano técnico, no qual a infraestrutura digital, composta por cabos, servidores, redes e algoritmos, passou a constituir o verdadeiro território político do século XXI. O poder, antes exercido pela imposição direta da força ou pela censura explícita, manifesta-se agora na administração dos fluxos de informação e na capacidade de determinar o que circula, o que é visível e o que permanece invisível. A tecnologia, que um dia foi celebrada como promessa de democratização, tornou-se o novo campo de tensão entre controle e autonomia.
Ao mesmo tempo, o episódio mostra que o silêncio não é ausência de linguagem, mas uma forma de comunicação dotada de intencionalidade política. O silêncio imposto pelo corte da internet revela o medo e a vulnerabilidade de regimes cuja estabilidade depende da supressão do conflito. A censura, nesse sentido, não é apenas uma estratégia de governo, mas um discurso sobre o próprio poder, uma tentativa de reafirmar autoridade pela negação da palavra alheia.
O desafio contemporâneo consiste em compreender que a liberdade de expressão
não se reduz ao direito individual de falar, mas implica a responsabilidade coletiva de sustentar o dissenso como parte constitutiva da vida pública. A liberdade não é a ausência de tensão, mas o espaço em que o conflito pode existir sem que precise ser reprimido. Em uma época em que o poder se exerce por meio da modulação dos fluxos comunicacionais, defender o direito de expressão significa também defender as condições materiais e institucionais que permitem o confronto de ideias. Cabe-nos lembrar que a liberdade não é ausência de conflito, mas o espaço em que ele pode existir.
Referências
CLOUDFARE RADAR. Afghanistan internet outage, September 2025. Disponível em:
JOVEM PAN. ONU pede aos talibãs que restabeleçam telecomunicações no Afeganistão. 30 set. 2025. Disponível em: https://jovempan.com.br/noticias/mundo/onu-pede-aos-talibas-que-restabelecam-telecomunicacoes-no-afeganistao.html.
INTERNETLAB. Relatório sobre regulação de plataformas e liberdade de expressão no Brasil. São Paulo, 2023.
UNITED NATIONS. Afghanistan: Humanitarian Response Report. Nova York: UN, 2024.
UNITED NATIONS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: ONU, 1948.





Comentários