Diplomacia digital e poder na era da interdependência tecnológica
- Paula Lazzari

- 22 de set.
- 4 min de leitura
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Em setembro de 2025, a Assembleia Geral sobre Defesa, Espaço e Cibersegurança da Agência Espacial Europeia reuniu delegados diante de painéis eletrônicos e telas digitais. O encontro marcou a centralidade do digital como tema de segurança e governança internacional. A diplomacia, antes restrita a negociações presenciais e documentos impressos, passou a incorporar protocolos técnicos e infraestrutura digital como objetos de debate. O conflito na Ucrânia, a disseminação de desinformação em eleições recentes e a rápida evolução da inteligência artificial consolidaram esse deslocamento da agenda internacional.
Nesse contexto, questões relacionadas à proteção de dados, à regulação de plataformas, à segurança cibernética e à governança de sistemas de IA passaram a influenciar diretamente a distribuição de poder entre Estados. Em consequência, a elaboração de normas deixou de ser vista apenas como regulação doméstica e passou a funcionar como instrumento de projeção internacional.

Concorrência entre modelos de governança digital
A União Europeia consolidou sua posição como referência regulatória. O Digital Services Act e o AI Act, em vigor desde 2024, exemplificam a transformação de legislações domésticas em padrões internacionais. Além de moldarem o funcionamento de plataformas dentro do bloco, esses instrumentos têm sido incorporados por empresas globais, que buscam manter acesso ao mercado europeu. Essa capacidade demonstra como a regulação se converteu em mecanismo de poder normativo, projetando a influência da União Europeia para além de suas fronteiras.
De forma distinta, os Estados Unidos sustentam sua posição pela centralidade das grandes empresas de tecnologia, que controlam setores estratégicos como semicondutores, serviços de nuvem e redes sociais. A dominância nessas cadeias críticas fornece ao país instrumentos para condicionar fluxos globais de informação e inovação. Esse poder estrutural tem sido utilizado de forma explícita em disputas econômicas e políticas, reforçando a interdependência como recurso estratégico.
Por sua vez, China e Rússia, em contraste, promovem um modelo de soberania digital baseado no controle estatal sobre dados e na criação de infraestruturas próprias. Além da regulação doméstica, esses países exportam equipamentos e soluções a parceiros interessados em reduzir dependências externas. Essa estratégia fortalece sua esfera de influência, especialmente nos países em desenvolvimento, em que a demanda por alternativas de conectividade e serviços digitais tem crescido.
No conjunto, a concorrência entre o modelo regulatório europeu, o liberal norte-americano e o soberanista asiático define as bases da ordem digital emergente. A competição envolve legitimidade, capacidade de adesão de terceiros e interoperabilidade de sistemas, com impacto direto sobre a governança internacional do ambiente digital.
O lugar do sul global
O G20 realizado em Nova Délhi em 2023 destacou a importância da infraestrutura pública digital, reconhecendo seu potencial para ampliar inclusão e reduzir custos de transação. Nesse cenário, a Índia aprovou a lei de proteção de dados pessoais em 2023, fortalecendo a regulação doméstica e projetando credibilidade em fóruns internacionais.
O Brasil, embora tenha inovado com o Marco Civil da Internet e consolidado um marco robusto com a Lei Geral de Proteção de Dados, ainda carece de uma diplomacia digital articulada. A ausência de coordenação entre ministérios, agências reguladoras e sociedade civil dificulta a transformação desse patrimônio normativo em influência efetiva em instâncias multilaterais.
A África do Sul concentra esforços em coalizões regionais e multilaterais, mas suas iniciativas permanecem limitadas pela falta de recursos e pela reduzida escala tecnológica. Assim, a posição do sul global continua marcada pela dependência: em grande parte das vezes, esses países adaptam-se a normas produzidas pela União Europeia, pelos Estados Unidos ou pela China.
Diplomacia digital como instrumento de poder
Diplomacia digital não se limita à comunicação em redes sociais. Trata-se da capacidade de propor normas, negociar compromissos e legitimar padrões que estruturam a vida digital global. Nesse sentido, decisões aparentemente técnicas sobre protocolos de roteamento, criptografia ou identidade digital possuem implicações políticas diretas. Além disso, a aprovação em 2024 de resoluções da Assembleia Geral da ONU sobre inteligência artificial segura e confiável demonstra que já existem pontos mínimos de convergência em nível multilateral, como transparência, segurança e respeito a direitos humanos.
A interdependência tecnológica, portanto, redefine a própria natureza do poder internacional. Esses princípios ainda precisam ser transformados em normas vinculantes. União Europeia, Estados Unidos e China avançam nesse campo, enquanto países do sul global enfrentam o dilema entre adaptar-se a regras externas ou construir capacidade para propor normas próprias. A interdependência tecnológica redefine, assim, a própria natureza do poder internacional.
Referências
BRADFORD, A. (2023). Digital Empires: The Global Battle to Regulate Technology. Oxford University Press.
FARRELL, H., & NEWMAN, A. (2023). Underground Empire: How America Weaponized the World Economy. Macmillan.
G20 NEW DELHI LEADERS’ DECLARATION (2023). Disponível em: https://www.g20.org
GOVERNMENT OF INDIA. Digital Personal Data Protection Act (2023).
Brasil. Lei nº 13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
DENARDIS, L. (2020). The Internet in Everything: Freedom and Security in a World with No Off Switch. Yale University Press.
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Resolution A/RES/78/265: Promoting Safe, Secure and Trustworthy AI (2024).





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