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Reforma administrativa - o que está em jogo?

Nota: As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem, necessariamente, a posição deste site.


Congresso Nacional, Brasília.
Congresso Nacional, Brasília. Foto: José Paulo Lacerda | Agência CNI

O debate acerca da Reforma Administrativa tem ganhado cada vez mais destaque nos últimos dias no Congresso Nacional e é necessário destacar alguns pontos iniciais para a plena compreensão do que está em jogo no cenário político nacional.


Ao contrário da iniciativa privada, os órgãos públicos têm limitações sobre o que e como podem realizar determinados atos, portanto, dependem essencialmente da previsão legal para atuarem. Assim, a administração pública depende de existência prévia de uma norma que autorize sua atuação, seja na Constituição de 1988, nas Leis Ordinárias e Complementares, nos Decretos, Regulamentos e Regimentos. Reforma Administrativa nada mais é que a alteração de algumas regras de gestão e atuação do funcionalismo público, ajustando parâmetros operacionais e administrativos na esfera pública.


Importante notar que a Reforma que está para entrar em pauta e ser discutida no Congresso Nacional não é a primeira e, muito provavelmente, não será a última a ocorrer no Brasil, porque faz parte de um processo natural e necessário para que a Administração Pública possa ser aprimorada e passe a acompanhar demandas sociais de forma mais eficaz. No entanto, a experiência brasileira com reformas anteriores mostrou resultados limitados e dificuldades de implementação.


A Administração Pública no Brasil é historicamente relacionada à desorganização, práticas patrimonialistas (confusão entre interesse público e privado) e burocráticas (práticas e procedimentos morosos, demorados e redundantes), prejudicando princípios de cidadania, do funcionalismo público e do Estado Democrático de Direito, como transparência e eficiência.


Leis e decretos institucionalizaram regras e modelos de organização da Administração Pública no intuito de modernizá-la e adequá-la às necessidades da população. Começando pela Patrimonialista, que vigorou durante todo o período Colonial, a Burocrática, extensamente criticada pela baixa profissionalização dos entes e por centralizar as tomadas de decisão importantes em um único agente público (portanto, mais demorada, menos acessível e de péssima qualidade) e, por fim, a Gerencial, adotada e implantada entre as décadas de 1990 e 2000, buscou implementar o modelo para que os atos administrativos fossem mais racionalizados, menos custosos, menos morosos e facilmente acompanhados pelos cidadãos durante e após a prestação do serviço público. No entanto, nenhum desses modelos foi totalmente bem-sucedido em sua implementação prática, seja por fatores políticos, culturais ou pela falta de recursos tecnológicos da época em que ocorreram.


Desde a implementação do Modelo Gerencial no Governo Federal, alguns cargos e órgãos foram reduzidos com o objetivo de “enxugar” os gastos públicos, ou seja, diminuir o volume dos custos administrativos para investir mais em outras pastas, como na de infraestrutura ou dos programas sociais nacionais. No entanto, o total de cargos públicos aumentou de 5,1 milhões para 11,4 milhões entre 1986 e 2017, representando um salto de 123% no período, ou 2,5% por ano (Lopez e Teles, 2021). Com o aumento de cargos, vêm também os aumentos e reajustes de salários, os benefícios e vantagens de carreira que representam hoje pouco mais de 16,9% das despesas do Governo Federal, ficando atrás apenas da Previdência Social, correspondente a 43,3% e que é indiretamente vinculada à gestão de pessoal e à folha de pagamento (Tesouro Nacional, 2025).


O debate acerca da quantidade, ou mesmo da necessidade, dos cargos públicos para atender as demandas sociais é melhor conduzida pelos especialistas do dimensionamento de força de trabalho, área responsável por identificar processos, fluxos de trabalho e técnicas para melhor alocar agentes em áreas necessárias. Convém lembrar que o Brasil está entre os dez maiores países do mundo em território e também em população e, ainda assim, a proporção de servidores públicos em relação à população é de 12,5%, abaixo da média de 21,1% nos países da Organização da Cooperação pelo Desenvolvimento Econômico. Países como Noruega (mais de 30%) e Estados Unidos (15,4%) têm índices superiores ao do Brasil (OCDE, 2018).


O Relator 1 do Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa, o Deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) apresentou um Projeto de Emenda Constitucional, única forma de alteração do texto constitucional, um Projeto de Lei e um Projeto de Lei Complementar à Câmara dos Deputados. A íntegra dos textos e anteprojetos ainda não estão disponíveis para consulta pública, mas o Deputado adiantou alguns pontos de interesse em entrevistas recentes.


Em resumo, são propostas de reforma do funcionalismo público voltadas a flexibilizar a estabilidade, mudar critérios e limites de remuneração, simplificar carreiras públicas e criar outras formas e vínculos de trabalho com a administração pública. Para quem prestou concurso nos últimos 20 anos, todos os temas são bem consolidados no âmbito do estudo constitucional. No entanto, quando a Câmara dos Deputados se propõe a discutir e votar uma Reforma Administrativa, precisamos entender, de fato, qual ou quais regras os parlamentares querem alterar e, mais importante, o porquê das alterações.


Estabilidade


A estabilidade é a proteção que impede que servidores concursados sejam demitidos de forma arbitrária, depois de cumprido o período probatório. Ela foi criada para evitar que o funcionalismo se tornasse refém de pressões políticas ou de interesses pessoais de gestores, garantindo imparcialidade e continuidade na administração pública. A proposta atual da reforma pretende flexibilizar ou até extinguir essa garantia. Para seus defensores, isso ajudaria a combater o comodismo e facilitaria a demissão por baixo desempenho. Já os críticos alertam que a mudança abriria espaço para perseguições políticas e para práticas de corrupção, fragilizando a atuação do serviço público.


Vínculos e formas de contratação de mão de obra


A administração pública no Brasil pode contratar servidores de diferentes formas, sendo o concurso público a mais comum e transparente, garantindo seleção por mérito e provas específicas. Também existem contratações temporárias, usadas em situações emergenciais, e os processos seletivos simplificados, que permitem escolhas mais rápidas para demandas de curto prazo, mas sem estabilidade. Já os cargos de confiança e o recrutamento amplo ocorrem por indicação, geralmente para funções de gerência, coordenação e assessoramento, levantando preocupações quanto ao uso político desta forma de contratação. Atualmente, o país conta com cerca de 7,5 milhões de servidores públicos entre União, Estados e Municípios, e a Reforma Administrativa pretende discutir mudanças nesse modelo de contratação.


Vencimentos e supersalários


Um ponto que merece grande atenção no cenário político e administrativo do Brasil são os supersalários. Nos termos do inciso XI do art. 37, nenhum ocupante de cargo público ou eletivo (oriundo de eleição) poderia receber salário superior ao vencimento dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), sendo o valor máximo o de R$46.366,19.


XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal [...];


Destaca-se que a redação do inciso XI foi editada pela Emenda Constitucional nº 41/2003 e, mesmo assim, vemos um aumento gradual de agentes públicos recebendo altíssimos salários, superando o assim chamado “teto constitucional”, termo que define o limite total de salário cumulado com benefícios a serem recebidos por todos e quaisquer profissionais pertencentes às cadeiras e carreiras da administração pública.


Bruno Carazza, em Nota Técnica para o Movimento Pessoas à Frente, mapeou diversas carreiras públicas recebendo salários muito além do limite constitucional, dentre eles, juízes, assessores parlamentares, membros do Ministério Público e de outros órgãos do funcionalismo público. Nos levantamentos de Carazza, 93% dos Juízes estaduais receberam valor superior ao teto constitucional em 2023, considerando valores totais anuais, fato que se repete em 12 dos 26 estados com membros do Ministério Público, que representaram 91,5% dentre os Promotores e Procuradores que receberam mais que Ministros do STF.


No Executivo Federal e no Legislativo Federal, ou seja, na Câmara dos Deputados e no Senado, o percentual de funcionários e servidores recebendo além do teto em 2023 foi inferior a 1%, o que mostra que o maior problema está concentrado no Poder Judiciário e no MP. Mas como é possível que servidores do Judiciário e do Ministério Público recebam salários tão altos? Pois bem, como os Três Poderes são independentes entre si, cada um deles têm autonomia para se organizar administrativamente e isso inclui, definir administrativamente sobre vencimentos, planos de carreira, cargos e salários, mas também sobre os benefícios e vantagens profissionais.


Os chamados “penduricalhos” são verbas indenizatórias compostas pelos auxílios de alimentação, saúde, transporte, moradia, creche e escolar para os filhos, ajudas de custo e as inacabáveis vantagens da carreira que podem somar valores de R$111 mil, como no caso calculado na reportagem do G1, dos vencimentos de um magistrado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ou seja, considerando o cargo e o tempo de carreira, o Juiz deveria ter recebido R$39.717 “brutos” (sem descontos de impostos, dos auxílios e vantagens), mas recebeu R$80 mil acima do teto constitucional (G1, 2025). Vale dizer que o magistrado, no geral, fora os casos dos supersalários, é a carreira com maior vencimento mensal médio e ainda assim são os que mais complementam seus salários com penduricalhos.


O “superávit salarial” no Judiciário correspondeu, em 2023, a R$9,76 bilhões, e ainda mais problemático, grande parte deles não tributáveis, ou seja, valores sobre os quais não incidem verbas previdenciárias, imposto de renda e algumas outras espécies tributárias. Portanto, pequena parte dos valores pagos no Judiciário voltam para os cofres públicos em forma de impostos, gerando um enriquecimento volumoso e acelerado dos magistrados em relação a carreiras que exigem mesmo nível de formação e experiência.


As “castas” do serviço público


A noção de "castas" no serviço público brasileiro, embora seja uma metáfora, aponta para uma falha sistêmica que supera a diferença de remuneração. O texto original define as castas como carreiras com salários e benefícios específicos que hierarquizam os privilégios na sociedade , destacando o grupo de carreiras jurídicas como a "casta mais alta". O problema, no entanto, não é apenas o valor dos super salários, mas a sua origem.


Ele é um reflexo do patrimonialismo e do clientelismo histórico da administração pública brasileira, que recentemente se ocupou para distinguir o interesse do Estado do interesse privado de seus gestores. A autonomia concedida a cada um dos Três Poderes para se organizar administrativamente e definir seus próprios vencimentos permitiu que essa herança cultural se institucionalizasse, criando um sistema de privilégios.


As implicações políticas de longo prazo são profundas. Enquanto uma minoria de servidores do Judiciário e do Ministério Público usufrui de rendimentos que superam o teto constitucional, grande parte da força de trabalho da linha de frente, como professores e enfermeiros, recebe salários próximos à média nacional. Essa desigualdade gera uma profunda erosão da confiança pública, pois o cidadão percebe que a máquina estatal não se comporta de forma uniforme e que não recompensa o mérito de forma equitativa. Mais perigoso ainda, a existência de uma "casta" protegida, com privilégio sobre os vencimentos, cria uma poderosa força de resistência a qualquer tipo de reforma. Ao concentrar os supersalários predominantemente no Judiciário e no MP, o problema se isola em um setor com grande poder político para barrar as mudanças, perpetuando o ciclo de privilégios e desigualdades.


O que nos espera no futuro?


No Congresso Nacional, a Reforma Administrativa avança em meio a um embate político que expõe duas visões distintas sobre o futuro do funcionalismo público. De um lado, seus defensores argumentam que a proposta é essencial para modernizar a máquina estatal, articulando para reduzir gastos, corrigir distorções salariais e limitar privilégios de determinadas carreiras. Do outro, sindicatos e especialistas alertam que a retirada de garantias históricas do funcionalismo público pode fragilizar a imparcialidade e a legalidade do serviço público, abrindo brechas para perseguições políticas e comprometendo a segurança das carreiras e instituições públicas, além de favorecer contratações de pessoal desqualificado e despreparado para cargos estratégicos da administração pública. O ponto central do debate, portanto, é se será possível alcançar eficiência e transparência sem abalar totalmente as bases que sustentam a confiança da sociedade nas instituições públicas brasileiras e equilibrar as contas. Apenas o futuro vai nos dizer se a Reforma Administrativa vai ter sucesso, ou se será apenas mais um caso de fracasso dentre as reformas.


Referências


CARAZZA, Bruno. Além do teto: Análises e Contribuições para o fim dos supersalários.

2024. Nota técnica - Movimento Pessoas à Frente. Disponível em: https://movimentopessoasafrente.org.br/wp-content/uploads/2024/12/MPaF_NOTAS_TECNICA_SUPERSALARIOS_DEZ_2024-8.pdf. Acesso em 8 Setembro 2025.


COELHO, Daniela Mello, 2000. Elementos essenciais ao conceito de administração gerencial. Revista de informação legislativa, v. 37, n. 147, p. 257-262, jul./set. 2000. Administração pública, Brasil | Reforma administrativa, Brasil. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/622. Acesso em 30 de Agosto de 2025.


BARBIÉRI, Luiz Felipe. Entenda o que são os supersalários dos funcionários públicos, que o governo quer restringir. Publicado em 13 Fevereiro de 2025. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/02/13/entenda-o-que-sao-os-supersalarios-dos-funcionarios-publicos-que-o-governo-quer-restringir.ghtml. Acesso em 17 Julho 2025.


LOPEZ, Felix; TELES, José. Atlas do Estado Brasileiro: Distribuição de remuneração nos níveis federativos (1985-2019) - Faixas de remuneração. Disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasestado/download/239/distribuicao-de-remuneracao-nos-niveis-federativos-1985-2019-faixas-de-remuneracao#iniciodoconteudo. Acesso em 21 Agosto 2025.


Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE. Relatórios Econômicos OCDE: Brasil. Fevereiro de 2018. DIsponível em https://www.oecd.org/content/dam/oecd/pt/publications/reports/2018/02/oecd-economic-surveys-brazil-2018_g1g89b03/9789264290716-pt.pdf. Acesso em 17 Julho 2025.


Tesouro Nacional. Despesa de Pessoal do Poder Executivo Federal alcança R$ 260 bilhões no

3º quadrimestre de 2024. Publicado em 31 Janeiro 2025. Disponível em: https://www.gov.br/tesouronacional/pt-br/noticias/despesa-de-pessoal-do-poder-executivo-

federal-alcanca-r-260-bilhoes-no-3o-quadrimestre-de-2024. Acesso em 30 Agosto 2025.


Secretaria de Educação de São Paulo. Edital de Abertura de Inscrições - 01/2023. Torna pública a abertura de inscrições e a realização do Concurso Público para provimento de 15.000 (quinze mil) vagas do cargo de Professor de Ensino Fundamental e Médio, SQC-II-QM do Quadro do Magistério da Secretaria de Estado da Educação. Publicado em 09 de Maio de 2023. Disponível em: https://documento.vunesp.com.br/documento/stream/MzUwMjk1NA%3d%3d.


Ministério Público do Estado de São Paulo. Edital 01/2025. Publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo em 19 de Agosto de 2024. Torna pública a abertura de inscrições para a realização de Concurso Público voltado à formação de Cadastro Reserva para o Cargo de Analista Jurídico do Ministério Público. Publicado em 17 de Junho de 2025. Disponível em: https://documento.vunesp.com.br/documento/stream/NzAwMDM4Mw%3d%3d.

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