Reservas internacionais e soberania monetária em tempos de reconfiguração sistêmica
- Paula Lazzari

- 16 de out.
- 4 min de leitura
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Em 2025, ouro e Bitcoin atingiram os maiores preços já registrados: o metal ultrapassou 4.000 dólares por onça troy e a criptomoeda superou os 125 mil dólares por unidade. Embora os movimentos de valorização tenham sido noticiados como expressões de euforia nos mercados financeiros, seus desdobramentos mais relevantes ocorreram no plano da política monetária internacional. Os preços recordes são indicativos de um deslocamento gradual nas estratégias estatais de gestão de reservas, com implicações diretas sobre os contornos da ordem monetária contemporânea.
A tendência foi antecipada por mudanças no comportamento de bancos centrais a
partir de 2022, com ênfase em economias emergentes e Estados submetidos a sanções ou tensões geopolíticas. Dados do World Gold Council indicam que, entre 2023 e 2024, a demanda oficial por ouro atingiu patamares recordes. Entre os maiores compradores estão China, Turquia, Cazaquistão, Polônia e Singapura. A busca por ativos físicos e tangíveis, com baixa correlação com o sistema financeiro global, tem se intensificado como estratégia de mitigação de riscos relacionados à concentração cambial e à politização de infraestruturas financeiras.
A centralidade renovada do ouro se justifica por suas propriedades materiais e institucionais. O ativo não envolve risco de crédito, é historicamente reconhecido como reserva de valor e pode ser custodiado diretamente pelos Estados. Ao contrário de títulos denominados em moedas fiduciárias, o ouro opera fora do alcance de medidas coercitivas unilaterais. Sua valorização recente correlaciona-se com eventos disruptivos e episódios de elevação do risco soberano, como destaca o Financial Stability Review do Banco Central Europeu.
O reposicionamento das reservas não se limita ao metal precioso. A partir da aprovação dos fundos negociados em bolsa (ETFs) de Bitcoin nos Estados Unidos, em 2024, o criptoativo passou a integrar as carteiras de diversificação patrimonial de instituições financeiras de grande porte. Trata-se de uma inflexão regulatória que ampliou a legitimidade do Bitcoin como instrumento financeiro, ainda que sua adoção como ativo de reserva por parte dos bancos centrais permaneça marginal. Seu apelo decorre de atributos distintos: escassez programada, ausência de autoridade emissora e operação descentralizada.
Embora o Bitcoin não atenda aos critérios clássicos de reserva de valor, dada sua alta volatilidade, dependência energética e vulnerabilidade cibernética, ele representa uma resposta política à erosão da confiança institucional. A desconfiança não apenas reflete a crise, mas redefine os critérios utilizados na escolha de ativos estratégicos. Em regimes de confiança plena, prevalecem a previsibilidade institucional e a liquidez. Já em contextos de fragmentação, ganham relevância atributos associados à autonomia e à proteção diante de medidas coercitivas externas.
A composição das reservas, nesse contexto, deixa de ser uma decisão exclusivamente técnica e passa a exercer função comunicativa. Ela transmite sinalizações sobre o grau de alinhamento institucional, a tolerância a riscos e as formas de inserção internacional preferidas por cada Estado. No caso brasileiro, a gestão segue ancorada em ativos denominados em dólares, com ajustes marginais em direção a ativos físicos como o ouro. O Banco Central adota uma postura de moderação, pautada pela previsibilidade e pela estabilidade institucional. Ainda assim, iniciativas recentes indicam uma busca gradual por instrumentos de maior autonomia. A implementação do Real Digital (DREX), moeda digital emitida pelo Banco Central, representa um passo nessa direção. Embora voltado inicialmente ao sistema financeiro doméstico, o DREX permite o desenvolvimento de infraestruturas de pagamento potencialmente conectáveis a arranjos regionais e transnacionais fora do circuito dolarizado. Seu impacto imediato sobre reservas é limitado, mas sua lógica converge com o movimento de desvinculação parcial de intermediários financeiros tradicionais e com o fortalecimento do controle soberano sobre fluxos monetários.
O contraste com países que adotaram estratégias de diversificação mais assertiva evidencia que a política de reservas se consolidou como um componente da política externa. A escolha entre ativos tangíveis, digitais ou fiduciários projeta preferências quanto à governança global, ao regime de sanções e ao grau de autonomia desejado. Nesse processo, os ativos de reserva deixam de funcionar como instrumentos neutros de gestão macroeconômica e passam a refletir disputas sobre a natureza da autoridade monetária.
A instabilidade fiscal norte-americana, a utilização do sistema financeiro como instrumento de coerção e a amplificação dos riscos geopolíticos têm incentivado a realocação de reservas para ativos menos sujeitos à intervenção externa. Evidências empíricas recentes apontam para uma reconfiguração das carteiras de bancos centrais, com crescente protagonismo de ativos tangíveis e digitais como formas de proteção diante da fragmentação monetária e da erosão da confiança institucional.
A valorização do ouro e a incorporação do Bitcoin não são fenômenos isolados. Eles apontam para uma reconfiguração mais ampla da linguagem do valor na economia política internacional. A reserva internacional, nesse novo ambiente, adquire o estatuto de ativo político. Assim, sua função ultrapassa a compensação de desequilíbrios externos, envolvendo projeções de identidade, sinalizações de confiabilidade e até escolhas sobre os contornos da autonomia estratégica. O debate sobre reservas é, portanto, inseparável da discussão sobre o tipo de ordem que os Estados estão dispostos a aceitar, bem como das formas pelas quais pretendem se proteger quando essa ordem se mostra instável.
Referências
Banco Central do Brasil. Estatísticas das reservas internacionais. Brasília: BCB, 2025. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/content/publicacoes/relgestaoreservas/GESTAORESERVAS202503-relatorio_anual_reservas_internacionais_2025.pdf.
CoinDesk. Bitcoin Price Index & Market Report – April 2025. CoinDesk, 2025. Disponível em: https://www.coindesk.com/price/bitcoin.
European Central Bank. The role of gold and Bitcoin in financial stability. Financial Stability Review, Frankfurt: ECB, 2025. Disponível em: https://www.ecb.europa.eu/pub/financial-stability/fsr
Hudima, T.; Kamyshanskyi, V. Bitcoin in Central Bank Reserves: A New Dimension of the US-China Power Struggle. Socio-Economic Relations in the Digital Age, v. 12, n. 2, 2025. Disponível em: https://www.ser.net.ua/index.php/SER/article/view/601
Kendrick, G. Weekly crypto report: Shutdown, risk and bitcoin premium.
Standard Chartered Insights, 2025. Disponível em: https://www.sc.com/en/insights/
World Gold Council. Gold Demand Trends Q2 2025. London: WGC, 2025.
Disponível em: https://www.gold.org/goldhub/research/gold-demand-trends
Deutsche Welle. O que está impulsionando as altas do ouro e do bitcoin? DW
Brasil, 2025. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-que-est%C3%A1-impulsionando-as-altas-do-ouro-e-do-bitcoin/a-1234567.





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