A Alemanha 10 anos após a crise dos refugiados: uma encruzilhada entre integração e restrição
- João Pedro Nascimento

- 1 de set.
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Em 2015, Angela Merkel projetou o país como liderança moral europeia ao manter as fronteiras abertas diante da crise síria. Em 2025, Friedrich Merz assume com um pacote de endurecimento migratório e uma agenda de segurança. Entre esses marcos, acumulam-se evidências de integração bem-sucedida, fricções sociais, dilemas institucionais e um deslocamento do centro do debate político para a direita.
Resultado da aposta de Merkel
A Alemanha, dez anos após a crise dos refugiados, encontra-se em uma encruzilhada complexa entre integração e restrição. Em 2015, a então chanceler, respaldada por valores humanitários, tomou a decisão de permitir que milhares de pessoas, sobretudo sírios, solicitassem asilo, flexibilizando na prática o Regulamento de Dublin. O efeito imediato foi um alívio humanitário na Rota dos Bálcãs e uma descentralização da pressão sobre os países fronteiriços, mas também uma sobrecarga significativa para municípios alemães, que enfrentaram grandes diferenças regionais na capacidade de acolhimento.
A narrativa pública ficou marcada pelo lema Wir schaffen das (Nós conseguimos lidar com isso), que se tornou ícone e alvo de críticas. Merkel reconhece hoje que sua decisão contribuiu para o fortalecimento da extrema direita representada pela AfD, mas reafirma que a medida foi “correta, razoável e humana” e que a integração alcançou conquistas notáveis ao longo da última década, criticando também os “pushbacks” sumários e defendendo que pedidos de asilo devem passar por procedimentos formais, mesmo quando realizados na fronteira.
No campo da integração, os resultados são mistos, com progressos claros, mas desigualdades persistentes. Em termos de emprego, dados oficiais indicam que cerca de 69% dos migrantes aptos a trabalhar que chegaram em 2015 estão empregados, praticamente na média nacional, contrariando leituras políticas mais alarmistas que sugeriam baixa inserção. Em relação à renda, estudos comparativos de 2017 revelam uma lacuna salarial média de aproximadamente 19,6% entre migrantes de primeira geração e nativos, sendo que três quartos dessa diferença resultam do acesso restrito a setores, cargos e empregadores que pagam melhor, e não de remuneração inferior pelo mesmo trabalho. Entre as segundas gerações, essa diferença cai para cerca de 7,7%, mostrando progresso, embora mais lento do que em países como Canadá e Suécia.
A heterogeneidade por nacionalidade é marcante: em 2023/24, migrantes franceses, benelux, suíços, chineses, americanos, indianos e brasileiros em emprego formal registraram medianas salariais superiores às dos alemães, enquanto sírios, romenos e búlgaros permaneceram abaixo, em grande parte devido à concentração em setores de menor remuneração, como o de cuidados e serviços. No quesito cidadania, 2024 marcou um recorde de naturalizações, com 291.955 pessoas, lideradas por sírios (28%) e turcos, que mais do que dobraram o número de naturalizações. Brasileiros naturalizados somaram 1.815, representando apenas 0,6% do total. A reforma que reduziu o período mínimo de residência para cinco anos, permitindo três anos em casos excepcionais e admitindo dupla nacionalidade, acelerou esse processo, embora o novo governo, liderado pelo chanceler Friedrich Merz, pretenda abolir a via de três anos.
Essa realidade evidencia um duplo movimento: enquanto uma parcela significativa de imigrantes consegue inserção econômica e acesso à cidadania, outra enfrenta barreiras estruturais, como dificuldades com o idioma, validação de diplomas e limitações nas redes profissionais, mantendo lacunas de renda e alimentando percepções de integração incompleta. Ao mesmo tempo, medidas recentes do governo Merz, incluindo restrições à cidadania acelerada, suspensão da reunificação familiar para refugiados com proteção subsidiária e endurecimento das regras de deportação, refletem um foco crescente em controlar e limitar a imigração, sinalizando uma Alemanha mais cautelosa e seletiva, em contraste com a política humanitária de 2015.
Apesar disso, a Alemanha ainda enfrenta desafios demográficos e econômicos significativos: o país depende de mão de obra qualificada, e a emigração seletiva de migrantes "bem-educados e economicamente ativos", impulsionada por discriminação, burocracia e clima político desfavorável, ameaça comprometer setores estratégicos como saúde, TI e educação. Assim, a encruzilhada alemã permanece marcada pelo delicado equilíbrio entre a necessidade de integrar e reter imigrantes, a pressão política interna e a demanda econômica por trabalhadores, revelando um debate profundo sobre identidade, cidadania e justiça social no país.
Ascensão do nacionalismo

A política alemã e a opinião pública passaram por transformações profundas desde o choque de 2015. Essa política abriu espaço para o crescimento de movimentos nacionalistas e de direita. O partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) emergiu como principal beneficiário desse clima, dobrando seu resultado eleitoral em 2025 e alcançando 20,8% dos votos, consolidando a pauta anti-imigração como eixo central do debate político.
Nesse cenário de polarização, Friedrich Merz, líder da União Democrata Cristã (CDU), foi eleito chanceler em 6 de maio de 2025, assumindo uma ampla coalizão conservadora formada por CDU/União Social-Cristã (CSU) e o Partido Social Democrata (SPD). Sua eleição ocorreu em meio a tensões políticas, já que a primeira votação não foi suficiente para sua escolha, sendo necessário recorrer a uma segunda rodada. O humor do eleitorado nos primeiros 100 dias reflete a complexidade desse contexto: 27% se declararam satisfeitos com o governo, enquanto 60% expressaram insatisfação, evidenciando as dificuldades de conciliar expectativas de ordem pública, segurança e políticas de imigração com pressões econômicas e sociais.
O estilo de Merz combina protagonismo externo com uma agenda conservadora, com foco em Ucrânia, União Europeia, OTAN e relações com os Estados Unidos, e microconflitos simbólicos, como o veto ao hasteamento da bandeira arco-íris no Reichstag e o impasse na indicação ao Tribunal Constitucional, que consolidam a percepção de reorientação conservadora do clima político.
No âmbito da imigração, o governo Merz implementa uma estratégia clara de “controlar e limitar”. Em relação a fronteiras e procedimentos, há reforço de controles e rejeições sumárias na entrada, contestadas judicialmente. No campo do asilo e deportação, o Executivo busca acelerar a devolução de pedidos rejeitados, reclassificar países de origem seguros sem necessidade de aprovação do Bundesrat e abolir a designação automática de advogado em custódia pré-deportação, medidas vistas como sensíveis do ponto de vista jurídico e constitucional. Quanto à reunificação familiar, o governo suspendeu por dois anos a entrada de familiares de refugiados com proteção subsidiária, mantendo apenas exceções humanitárias, reduzindo pressões sobre municípios e impactando diretamente perfis numerosos de sírios, afegãos e iraquianos. No campo da cidadania e da integração, Merz encerrou a possibilidade de obtenção da cidadania acelerada em três anos, mantendo a regra de cinco anos, sinalizando seletividade em favor de migrantes qualificados para o mercado de trabalho, mas restritividade para outros grupos.
O pacote institucional de Merz representa uma tentativa de reinterpretar normas do direito europeu e da Constituição alemã, como o Regulamento de Dublin e a classificação de países seguros, o que deve levar a judicializações futuras.
Retenção de talentos e o desafio da imigração
A retenção de talentos evidencia uma tensão central na política migratória alemã: apesar das medidas de controle e seletividade, muitos imigrantes continuam planejando deixar o país. Dados do Instituto de Pesquisa do Mercado de Trabalho e Profissões (IAB) de 2024/25 indicam que 26% dos migrantes consideraram sair da Alemanha, sendo que 3% têm planos concretos de emigração. Curiosamente, quem mais pensa em partir são aqueles com maior escolaridade, melhores competências em alemão e rendimentos superiores, especialmente profissionais de TI, finanças e negócios, com 30–39% manifestando intenção de emigrar, além de trabalhadores dos setores de saúde, manufatura e logística.

As motivações variam: para quem retorna ao país de origem, predominam razões familiares; para os que buscam outros destinos, como Suíça, Estados Unidos ou Espanha, pesam carreira, salários, carga tributária, excesso de burocracia e, crucialmente, discriminação, relatada por quase dois terços dos entrevistados, enquanto um terço se sente pouco ou nada bem-vindo. Esse fenômeno gera risco de uma “emigração seletiva” justamente entre os perfis de que a economia alemã mais carece, levando a medidas controversas, como a proposta da CDU de vincular estudantes estrangeiros de Medicina a um mínimo de cinco anos de serviço no país ou reembolso integral de sua formação. A leitura é clara: atrair imigrantes qualificados não é suficiente se não houver mecanismos de retenção eficazes. É preciso melhorar as portas internas, garantindo validação de credenciais, progressão de carreira, mobilidade geográfica, respeito e senso de pertencimento.
O que esperar?
Nesse contexto, a análise integrada dos últimos dez anos revela coerências, tensões e cenários distintos. Entre as coerências, o recorde de naturalizações em 2024 confirma que a política de 2015 gerou uma coorte significativa que se integrou e optou por permanecer na Alemanha. A taxa de emprego dessa coorte está próxima da média nacional, contrariando narrativas de fracasso generalizado, enquanto a lacuna salarial observada decorre principalmente de barreiras de acesso a determinados setores e cargos. Quando esses obstáculos são superados, trabalhadores de algumas nacionalidades chegam a ter medianas salariais superiores às dos alemães.
Ao mesmo tempo, persistem tensões importantes. O discurso de ordem e o endurecimento do governo Merz respondem a um ambiente político marcado pelo crescimento da AfD e pelo endurecimento da opinião pública, mas podem intensificar a sensação de não pertencimento e discriminação, alimentando a saída dos mais qualificados. As empresas continuam a enfrentar escassez de mão de obra, com 1,4 milhão de vagas abertas no fim de 2024 em saúde, TI, construção, transporte e educação, enquanto os municípios lidam com pressões em moradia, escolas e serviços. O sistema educacional também mostra sinais de fadiga: sem pré-escola robusta e apoio linguístico precoce, o ciclo de baixo desempenho e subemprego tende a se reproduzir.
Diante desse quadro, os cenários possíveis variam de forma significativa. Um modelo de seleção e retenção focaria na imigração qualificada com vias rápidas para validação de credenciais, políticas de combate à discriminação, desburocratização e apoio educacional precoce, reduzindo lacunas salariais, aumentando produtividade e retendo talentos. Por outro lado, um modelo de controle sem retenção, baseado em fronteiras mais rígidas e mensagem dissuasória, diminuiria fluxos irregulares, mas perderia capital humano já formado, mantendo vagas críticas abertas e aumentando o custo previdenciário diante de uma população envelhecida. Finalmente, uma recalibração europeia, envolvendo reformas no Regulamento de Dublin, no espaço Schengen e em parcerias externas, poderia uniformizar padrões de triagem e repartição de refugiados. Embora difícil de implementar no curto prazo, seria determinante para a sustentabilidade do regime migratório alemão.
Referências
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DEUTSCHE WELLE. Alemanha concedeu número recorde de cidadanias em 2024. Deutsche Welle. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/alemanha-concedeu-n%C3%BAmero-recorde-de-cidadanias-em-2024/a-72861248>.
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