Nova Doutrina Modi: um futuro incerto
- João Pedro
- 3 de mai.
- 7 min de leitura
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Desde o ataque de 22 de abril de 2024, que resultou na morte de 26 civis na Caxemira administrada pela Índia, a região voltou a figurar entre os pontos de tensão mais perigosos do mundo. Em resposta, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, proferiu um discurso enfático em inglês, prometendo identificar e punir todos os responsáveis pelo terrorismo, bem como seus apoiadores. Uma mensagem direcionada não apenas à população indiana, mas também ao Paquistão e à comunidade internacional, indicando que a Índia considera uma resposta militar enérgica. O episódio reacendeu lembranças do confronto de 2019, quando atentados semelhantes culminaram em ações militares mútuas e levaram Índia e Paquistão à beira de um conflito de grandes proporções. Naquela ocasião, a crise foi contida graças à intervenção de potências estrangeiras e a circunstâncias fortuitas.
No entanto, o cenário atual é mais volátil. A crescente centralização do controle indiano sobre a Caxemira, aliada a políticas de linha dura do governo Modi, intensificou a alienação da população local, majoritariamente muçulmana. Como resultado, o recente massacre ampliou as tensões entre os dois países, com lideranças e figuras públicas indianas clamando por retaliação e autoridades paquistanesas condenando as medidas indianas na região.
Para melhor compreensão desse contexto, segue abaixo uma linha do tempo que sintetiza os principais marcos históricos da relação entre Índia e Paquistão, com ênfase especial na disputa pela Caxemira.
Linha do tempo da relação Índia–Paquistão e a questão da Caxemira
1947 – Partição da Índia e Primeira Guerra Indo-Paquistanesa
Com a independência do subcontinente indiano em relação à Coroa Britânica, em 1947, a região foi dividida em dois Estados: a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana, composto inicialmente por duas regiões separadas geograficamente — Paquistão Ocidental e Paquistão Oriental (futuro Bangladesh). Divergências sobre a soberania da região deram início à Primeira Guerra Indo-Paquistanesa. O conflito terminou em 1948 com um cessar-fogo mediado pela ONU, que resultou na divisão da Caxemira entre os dois países.
1965 – Segunda Guerra Indo-Paquistanesa
Em 1965, o Paquistão lançou uma ofensiva para tomar a região da Caxemira sob controle indiano. O conflito foi interrompido após mediações da União Soviética e dos Estados Unidos, culminando na assinatura da Declaração de Tashkent. As partes concordaram em restabelecer as fronteiras anteriores ao conflito e em não interferir nos assuntos internos uma da outra.
1971 – Terceira Guerra Indo-Paquistanesa
A Terceira Guerra teve origem na crise política no Paquistão Oriental, onde divergências eleitorais levaram à eclosão de um movimento separatista. A violenta repressão por parte das forças armadas paquistanesas resultou em uma grave crise humanitária, com milhões de refugiados buscando abrigo na Índia. Em resposta ao apoio indiano aos separatistas bengaleses, o Paquistão iniciou ataques contra o território indiano, desencadeando a guerra. Após aproximadamente duas semanas de conflito, o Paquistão Ocidental foi derrotado e o Paquistão Oriental declarou sua independência, dando origem a República Popular de Bangladesh.
1980 - atualidade
Desde a década de 1980, a região da Caxemira enfrenta um cenário persistente de violência e instabilidade. A partir de 1989, iniciou-se uma insurgência armada separatista na Caxemira indiana, com participação de grupos militantes, alguns com ligações ao Paquistão. O conflito resultou em décadas de confrontos, repressão e atentados terroristas. Em 1999, o Conflito de Kargil marcou um momento crítico, com a infiltração de tropas paquistanesas e militantes em território indiano, levando a uma resposta militar que quase culminou em guerra nuclear.
Durante os anos 2000, houve tentativas de cessar-fogo e diálogo bilateral, mas essas iniciativas foram constantemente interrompidas por ataques, como o atentado em Mumbai em 2008. A tensão aumentou novamente em 2016, após ataques contra tropas indianas, seguidos por operações de retaliação. Em 2019, o atentado suicida em Pulwama, reivindicado por um grupo paquistanês, levou a bombardeios aéreos entre os dois países e ao fim da autonomia constitucional da Caxemira pela Índia. Desde então, a região vive sob uma estabilidade tensa, marcada por forte presença militar, episódios esporádicos de violência e ausência de uma solução política duradoura.
A região da Caxemira

O Sul da Ásia entre guerra
Após o ataque terrorista na Caxemira administrada pela Índia em abril de 2025, o governo de Narendra Modi tomou medidas sem precedentes, sinalizando uma escalada significativa em relação a crises anteriores como a de 2019. A mais ousada foi a suspensão unilateral do Tratado das Águas do Indo (1960), um pacto histórico mediado pelo Banco Mundial que garante ao Paquistão o acesso a rios essenciais para sua agricultura e segurança hídrica.
Essa ruptura foi justificada por Nova Déli como forma de pressionar Islamabad a renunciar de forma "crível e irrevogável" ao apoio ao terrorismo. No entanto, a Índia não apresentou provas robustas de envolvimento paquistanês no ataque, gerando acusações de "terrorismo hídrico" por parte do Paquistão, que reagiu com forte retórica e medidas de retaliação econômica, como o fechamento do espaço aéreo e a suspensão do comércio bilateral.
O Paquistão agora prepara uma ação legal internacional, considerando recorrer ao Banco Mundial, ao Tribunal Permanente de Arbitragem e ao Tribunal Internacional de Justiça, com base na alegada violação da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. O uso da água como instrumento de pressão geopolítica representa uma perigosa inovação na já volátil relação indo-paquistanesa. Trata-se de uma mudança qualitativa na doutrina indiana, indicando disposição para usar instrumentos estratégicos de longo prazo, como o controle de recursos naturais, como ferramenta de coerção. Isso amplia os riscos de conflito, dada a interdependência hídrica crítica e a possibilidade de incidentes escalaram para confrontos armados.
Desde a crise de Ladakh em 2020, a Índia passou a reorientar sua doutrina militar, colocando a contenção da China como prioridade estratégica. O confronto mortal com tropas chinesas naquele ano, ao longo da disputada Linha de Controle Real (LAC), foi o mais grave em mais de meio século e provocou uma resposta sistemática de Nova Déli. Desde então, o país tem investido pesadamente na modernização de suas Forças Armadas, com foco na preparação para combates de alta intensidade em terrenos de difícil acesso, como os Himalaias.
Nesse contexto, o ataque terrorista de abril de 2025 na Caxemira administrada pela Índia representa uma oportunidade estratégica. Embora Nova Déli tenha denunciado o envolvimento do Paquistão, a resposta indiana pode estar menos ligada ao ataque em si e mais ao momento geopolítico mais amplo. A Índia tem agora a chance de projetar poder militar e testar, na prática, sua prontidão para enfrentar conflitos simultâneos em duas frentes — uma contra o Paquistão, e outra contra a China. Mais do que uma simples retaliação, essa postura permite à Índia exercitar sua capacidade de dissuasão e sinalizar sua evolução como potência regional autônoma e preparada.
Além disso, a escalada contra o Paquistão pode servir a um propósito geopolítico ainda mais sofisticado: desgastar a parceria estratégica entre Islamabad e Pequim. Nos últimos anos, o Paquistão tornou-se cada vez mais dependente da China, especialmente em termos militares, com a aquisição de equipamentos do Exército de Libertação Popular e a realização de exercícios conjuntos. Também é peça-chave da Iniciativa Cinturão e Rota, com destaque para o Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC).
Diante disso, uma resposta militar contundente por parte da Índia pode ter múltiplos efeitos: danificar equipamentos militares chineses operados pelo Paquistão, expor vulnerabilidades operacionais e, sobretudo, lançar dúvidas em Pequim sobre a confiabilidade de seu parceiro estratégico. A Índia, portanto, utiliza o momento não apenas para se afirmar perante seu rival histórico, mas também para provocar fissuras na arquitetura de alianças que sustenta a projeção de poder chinesa na região.
E os EUA?
Washington tem tentado evitar uma escalada militar entre os vizinhos nucleares. Tanto o vice-presidente dos EUA, JD Vance, quanto o secretário de Estado Marco Rubio pediram moderação por parte da Índia e cooperação do Paquistão na responsabilização dos autores do atentado. Ainda assim, as acusações de Nova Déli ao Paquistão e rumores de uma possível retaliação militar agravam o risco de um conflito mais amplo.
Em paralelo, os Estados Unidos intensificam sua aproximação com a Índia, sobretudo por meio de um acordo comercial em negociação. Esse movimento é interpretado como parte da estratégia americana de contenção da China, ao tentar enfraquecer alianças do gigante asiático no Sul Global. Analistas apontam que, se o acordo tiver cláusulas explicitamente contrárias a Pequim, poderá enfraquecer ainda mais os já tensos laços sino-indianos, que têm sido marcados por disputas fronteiriças e desconfiança mútua.
A China, por sua vez, se vê diante de um dilema: embora mantenha uma relação estratégica com o Paquistão, também reconhece a importância de preservar algum grau de cooperação com a Índia, que é uma peça relevante no tabuleiro do Sul Global e nos fóruns multilaterais como o BRICS. O aprofundamento do conflito Índia-Paquistão pode forçar Pequim a escolher entre pressionar Islamabad a cooperar ou reforçar sua aliança com o Paquistão, o que deterioraria ainda mais suas relações com Nova Déli.
Internamente, a Índia reforça sua doutrina de defesa focada na contenção da China e acelera sua aproximação estratégica com os EUA. Essa reorientação compromete a posição tradicionalmente equidistante da Índia nas disputas entre grandes potências, e pode sinalizar uma reconfiguração duradoura da ordem regional. A crescente militarização indiana, aliada à busca por protagonismo no Sul Global e insatisfação com o papel dominante da China no BRICS, aponta para um cenário futuro de competição estratégica mais intensa.
Dessa forma, o ataque na Caxemira funciona como catalisador de uma reordenação geopolítica mais ampla, em que a rivalidade Índia-Paquistão se entrelaça com a disputa China-EUA, e onde Nova Déli emerge como um ator cada vez mais ativo, mas também pressionado na definição dos rumos da política asiática e global.
Referências
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