A nova arquitetura fiscal brasileira
- Alisson Geovani Pinheiro

- 31 de out.
- 8 min de leitura
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O governo federal prepara o envio ao Congresso Nacional de dois novos projetos de lei que buscam reorganizar o sistema fiscal brasileiro. Sob a liderança do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e com o aval político do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o plano pretende conter gastos, reequilibrar as contas públicas e aumentar a arrecadação por meio de setores em expansão, como fintechs e apostas online. Embora o discurso oficial seja o da “responsabilidade fiscal com justiça social”, o conteúdo das propostas expõe tensões antigas da economia brasileira: a disputa entre ajuste e proteção de direitos.
1. Contexto e Motivações: a herança da MP 1303 e o desafio do superávit
A iniciativa nasce da tentativa frustrada do governo de aprovar a Medida Provisória 1303, que caducou sem votação no Congresso. Essa MP previa um pacote de medidas voltadas à ampliação de receitas, revisão de benefícios fiscais e controle de gastos públicos. A resistência parlamentar refletiu a dificuldade de articular uma base política sólida em temas de natureza econômica, especialmente em ano pré-eleitoral, quando cortes ou taxações são vistos como impopulares.
Com o fracasso da MP, Haddad redesenhou a estratégia. Em vez de concentrar as mudanças em um único texto, o governo decidiu fatiar a reforma fiscal em dois projetos distintos:
Projeto 1: voltado à contenção de gastos e limitação de créditos fiscais de empresas, buscando reduzir a despesa primária.
Projeto 2: destinado ao aumento de arrecadação, com foco em setores de alto lucro e baixa regulação, como fintechs e apostas esportivas.
O objetivo central do novo arcabouço é alcançar um superávit primário de 0,25% do PIB em 2026, uma meta que, à primeira vista, pode parecer tímida, mas cuja dimensão simbólica e política é enorme. Em termos técnicos, o superávit primário representa a diferença positiva entre receitas e despesas do governo, desconsiderando o pagamento de juros da dívida pública. É, portanto, o principal indicador de responsabilidade fiscal utilizado para medir a capacidade do Estado de honrar seus compromissos financeiros sem depender de endividamento adicional.
Desde o Plano Real, nos anos 1990, o Brasil construiu uma cultura econômica em que o superávit primário passou a funcionar como sinalizador de confiança para o mercado e como pré-condição para a estabilidade macroeconômica. Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e, em seguida, de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010), a busca pelo equilíbrio das contas públicas foi vista como garantia de previsibilidade para investidores, manutenção da inflação sob controle e atração de capitais externos. Essa lógica consolidou a ideia de que a credibilidade fiscal é indispensável para qualquer projeto de governo, inclusive os de orientação progressista.
Contudo, o debate sobre o tamanho e o papel do superávit divide economistas e partidos há décadas. De um lado, estão os que defendem metas fiscais mais rígidas, argumentando que déficits constantes aumentam o custo da dívida pública, elevam os juros e corroem a confiança internacional. De outro, estão os que consideram o superávit uma forma de austeridade seletiva, usada para justificar cortes em políticas sociais e investimentos públicos, perpetuando desigualdades estruturais. O próprio governo Lula já viveu esse dilema no passado: durante o primeiro mandato (2003–2006), a meta de superávit de 4,25% do PIB gerou críticas internas por limitar a expansão dos programas sociais, embora tenha sido fundamental para estabilizar a economia pós-crise cambial.
No contexto atual, a meta de 0,25% surge como um gesto político de conciliação entre essas duas visões. É baixa o suficiente para permitir a continuidade de investimentos públicos e programas sociais, mas suficiente para sinalizar ao mercado e às agências internacionais que o governo não abandonará a disciplina fiscal. Essa calibragem reflete a tentativa de Haddad e Lula de reconstruir a ponte entre responsabilidade fiscal e justiça social, abalada após anos de polarização ideológica e crises fiscais consecutivas, especialmente no período pós-2014, marcado por déficits persistentes, recessão e aumento explosivo da dívida.
Ao adotar uma meta modesta, o governo busca também ganhar tempo político. O raciocínio é pragmático: manter as expectativas ancoradas enquanto o país retoma crescimento econômico, amplia a base de arrecadação e reduz gradualmente a dependência de medidas emergenciais. Nesse sentido, o superávit de 0,25% funciona menos como meta contábil e mais como sinal de estabilidade institucional, uma forma de dizer que o Brasil está disposto a equilibrar as contas sem reproduzir o discurso punitivo da austeridade.
No entanto, a escolha é arriscada. Metas muito baixas podem ser lidas pelo mercado como falta de compromisso fiscal, pressionando juros e câmbio; já metas muito ambiciosas podem exigir cortes que corroem políticas essenciais. O desafio de Haddad é sustentar o “meio-termo” entre esses polos, demonstrando que o país pode, simultaneamente, reduzir vulnerabilidades financeiras e ampliar o Estado de bem-estar. Em outras palavras, o sucesso dessa meta não será medido apenas pelo número em si, mas pela capacidade de o governo converter estabilidade fiscal em estabilidade social, algo que o Brasil historicamente falhou em fazer.
2. O Eixo da Contenção: limitar créditos fiscais e frear gastos
O primeiro projeto volta-se aos chamados créditos fiscais, valores que empresas podem abater de tributos futuros como compensação por prejuízos acumulados ou incentivos fiscais concedidos pelo Estado. Esse mecanismo, criado para garantir equilíbrio contábil e estimular a atividade econômica, tornou-se, com o tempo, um instrumento controverso: embora legítimo, passou a ser utilizado de forma recorrente por grandes corporações para postergar o pagamento de tributos, afetando a arrecadação federal e ampliando as distorções entre pequenas e grandes empresas.
De acordo com o Ministério da Fazenda, essa é uma das principais fontes de renúncia fiscal no país. A proposta em elaboração prevê a criação de um teto anual para o uso de créditos tributários, além de uma revisão nas regras de compensação aplicadas a empresas com altos volumes de prejuízos acumulados. O objetivo é reduzir a volatilidade nas receitas e melhorar a previsibilidade das contas públicas. Embora o governo ainda não tenha publicado um relatório técnico detalhado sobre o impacto dessa medida, estimativas internas divulgadas à imprensa internacional, especialmente pela Reuters (14 e 21 out. 2025) e Yahoo Finanças Canadá, apontam que as mudanças poderiam gerar receitas adicionais de cerca de R$ 14,8 bilhões em 2025 e R$ 36,2 bilhões em 2026.
Esses valores refletem projeções preliminares da equipe econômica, e não cálculos auditados. No Brasil, a discussão sobre o tema foi confirmada por veículos como a Agência Brasil e a Fenafisco, que reportaram que o governo estuda limitar o uso de créditos de prejuízo fiscal por empresas. A Receita Federal, em maio de 2025, lançou um painel interativo de benefícios fiscais para tornar mais transparentes os valores de renúncia, o que reforça a importância e a atualidade desse debate.
No lado das despesas, o governo pretende congelar repasses não obrigatórios, postergar investimentos de execução lenta e restringir reajustes automáticos em áreas administrativas. A justificativa é “aparar excessos” e conter o crescimento vegetativo do gasto público sem comprometer políticas estruturais. No entanto, essa linha é tênue: cortes mal calibrados podem recair sobre programas sociais, universidades e políticas culturais, comprometendo direitos econômicos, sociais e culturais garantidos pela Constituição.
3. O Eixo da Arrecadação: fintechs, apostas e capital financeiro sob nova lupa
O segundo projeto busca atualizar a estrutura tributária, mirando setores de alta rentabilidade que, até então, escapavam da mesma carga aplicada a indústrias tradicionais.
As apostas online, popularizadas após a regulamentação de 2023, devem ter a alíquota de tributação aumentada de 12% para algo entre 18% e 24%, refletindo a preocupação do governo com a evasão fiscal e a falta de controle social sobre o setor. Já as fintechs serão gradualmente equiparadas a bancos, pagando tributos proporcionais à natureza de suas operações, o que muda o custo de operação e a lógica de competitividade no mercado digital.
Além disso, o pacote retoma discussões sobre a reoneração de investimentos isentos (como LCI, LCA, CRI e CRA) e o aumento do imposto sobre Juros sobre Capital Próprio (JCP), uma forma de remuneração de acionistas que, segundo críticos, privilegia grandes empresas em detrimento da progressividade tributária. Em termos práticos, o governo tenta sinalizar justiça fiscal, quem lucra mais deve contribuir mais. No entanto, o risco de repasses indiretos é real: plataformas podem aumentar taxas e juros, e investidores podem migrar para produtos menos regulados, anulando parte da eficácia arrecadatória.
4. Impactos e Desigualdades: quem paga a conta do equilíbrio fiscal
As medidas afetam diferentes grupos sociais e econômicos de modo desigual.
● Empresas com grandes créditos fiscais terão restrições e possivelmente repassarão custos para o consumidor final ou para seus funcionários.
● Setores de apostas e tecnologia financeira perderão margem de lucro e podem reduzir investimentos.
● Investidores de classe média e alta verão rendimentos menores caso os produtos
isentos sejam tributados.
● Populações vulneráveis, por outro lado, enfrentam risco indireto: se os cortes orçamentários afetarem programas de transferência de renda, saúde, cultura e habitação, o impacto social pode ser profundo.
O histórico brasileiro mostra que ajustes fiscais tendem a ser regressivos quando a proteção social não é blindada. Sem salvaguardas explícitas, o “equilíbrio das contas” pode significar apenas a redistribuição de custos, do Estado para os cidadãos.
Politicamente, o governo tenta equilibrar dois campos em tensão permanente: o mercado financeiro, que cobra estabilidade e previsibilidade, e a base social e progressista, que exige manutenção de direitos e investimentos públicos. A aposta de Haddad é que a credibilidade fiscal gere espaço para políticas redistributivas sustentáveis.
Mas o desafio é imenso. O Brasil vive um orçamento engessado, onde mais de 90% das despesas são obrigatórias (salários, aposentadorias, saúde, educação). Sobra pouco espaço para cortes sem gerar desgaste político. Além disso, a resistência do Congresso, influenciado por bancadas corporativas e regionais, pode esvaziar as propostas ou distorcer seus objetivos.
Economicamente, há também um dilema de tempo: os resultados fiscais só aparecem no médio prazo, enquanto o custo político dos ajustes é imediato. O risco é o governo sacrificar investimento público em infraestrutura e inovação, travando o crescimento e reduzindo o próprio potencial de arrecadação futura.
Mais do que um pacote de medidas técnicas, a nova política fiscal é uma decisão moral travestida de planilha. Ela define quem será poupado e quem será sacrificado no esforço de “arrumar as contas”. Se o ajuste for seletivo, isto é, cobrando mais de setores ricos, cortando privilégios e preservando direitos básicos, poderá reforçar a legitimidade do Estado. Mas, se seguir o caminho histórico de austeridade sobre os pobres, repetirá o ciclo de exclusão que
marca o capitalismo brasileiro.
Em última instância, o governo Lula/Haddad tenta provar que é possível combinar responsabilidade fiscal com inclusão social, um equilíbrio que raramente deu certo no país. O sucesso dependerá da transparência, da qualidade técnica dos projetos e, sobretudo, da disposição política de proteger os mais frágeis mesmo sob pressão de elites econômicas e parlamentares.
O novo pacote fiscal representa um ponto de inflexão para o Brasil. Ele pode consolidar uma cultura de equilíbrio responsável e justiça tributária, ou reforçar a velha prática de sacrificar direitos em nome do “mercado”. A separação dos projetos em eixos distintos é inteligente, mas insuficiente sem garantias explícitas de que saúde, educação e cultura não serão as primeiras vítimas do ajuste. No fundo, a questão não é apenas “quanto o Estado gasta”, mas para quem ele serve. Se o governo conseguir provar que responsabilidade fiscal e justiça social não são opostos, mas complementares, o Brasil pode dar um passo histórico. Caso contrário, será mais um capítulo do mesmo enredo: austeridade em nome da estabilidade, e estabilidade às custas da desigualdade.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. Receita lança painel interativo de benefícios fiscais a empresas. Brasília: EBC, 14 maio 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2025-05/receita-lanca-painel-interativo-de-beneficios-fiscais-empresas. Acesso em: 23 out. 2025.
BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 221, de 2025. Dispõe sobre o plano de redução gradual de benefícios financeiros e creditícios e altera dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Brasília: Câmara dos Deputados, 2025. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2573466. Acesso em: 20 out. 2025.
ERNST & YOUNG (EY). Brazilian government announces substantial tax changes affecting interest on net equity, financial investments, betting operations and IOF regulations. Global Tax News, 2025. Disponível em: https://globaltaxnews.ey.com/news/2025-1243-brazilian-government-announces-substantial-tax-changes-affecting-interest-on-net-equity-financial-investments-betting-operations-and-iof-regulations. Acesso em: 25 out. 2025.
O GLOBO. Haddad confirma meta de superávit de 0,25% em 2026; não tem previsão de mudança. Rio de Janeiro: O Globo, 10 abr. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/04/10/haddad-confirma-meta-de-superavit-de-025percent-em-2026-nao-tem-previsao-de-mudanca.ghtml. Acesso em: 25 out. 2025.
REUTERS. Brazil government to resubmit part of fiscal measures to Congress after setback. Londres, 21 out. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/americas/brazil-decide-2026-budget-fix-tuesday-says-finance-minister-2025-10-21/. Acesso em: 23 out. 2025.
REUTERS. Brazil to start debating fiscal measures after Congress setback, says finance minister. Londres, 14 out. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/americas/brazil-start-debating-fiscal-measures-after-congress-setback-finance-minister-2025-10-14/. Acesso em: 23 out. 2025.





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